CAPÍTULO 5
1. Porque todo sumo sacerdote, sendo tomado dentre os homens, é constituído nas coisas concernentes a Deus, a favor dos homens, para oferecer assim dons como sacrifícios pelos pecados, 2. e capaz de condoer-se dos ignorantes e dos que erram, pois que ele mesmo também está rodeado de fraquezas. 3. E, por essa razão, deve oferecer sacrifícios pelos pecados, assim do povo, como de si mesmo. 4. E ninguém toma tal honra para si mesmo, a não ser quando chamado por Deus, como aconteceu com Arão. 5. Assim, também Cristo não glorificou a si mesmo para tornar-se sumo sacerdote, mas aquele que lhe disse: Tu és meu Filho, eu hoje te gerei; 6. como em outro lugar também diz: Tu és sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquisedeque.
1. Porque todo sumo sacerdote.
Ele traça uma comparação entre Cristo e os sacerdotes levitas e mostra em que ponto se assemelham e a diferença que existe entre eles.
E o objetivo de todo o discurso é mostrar qual de fato é o ofício de Cristo, e também mostrar que tudo o que foi instituído sob a lei, foi instituído por sua causa.
Daqui o apóstolo avança com o intuito de finalmente mostrar que o antigo sacerdócio foi abolido.
Em primeiro lugar ele declara que os sacerdotes eram “tomados dentre os homens
Em segundo lugar que eles não agiam particularmente, e sim que oficiavam em favor de todo o povo
Em terceiro lugar, que não compareciam diante de Deus de mãos vazias, e sim ocupadas com sacrifícios
Em quarto lugar, que não estavam isentos de nossas fraquezas, para que pudessem, com melhor disposição, socorrer-nos em nossas tribulações;
Em quinto lugar,não deviam lançar-se precipitadamente ao desempenho de seu ofício, e que então só desfrutavam de uma honra legítima quando fossem eleitos para o mesmo e aprovados por Deus.
Tratemos agora, sucintamente, de cada um desses pontos.
Antes de agirmos assim, devemos, contudo, expor a ignorância daqueles que aplicam esses princípios ao nosso tempo, como se hoje houvesse a mesma necessidade de termos sacerdotes para o oferecimento de sacrifícios.
Ao mesmo tempo, não há necessidade, aqui, de uma longa refutação. Que maior evidência há do que a verdade encontrada em Cristo, a qual está sendo comparada com seus tipos, os quais eram anteriores a ela em tempo e que agora cessaram?
Mas isso transparecerá ainda mais plenamente à luz de todo o contexto. Quão ridículo é o procedimento dos que pretendem encontrar nesta passagem apoio para o sacrifício da missa!
Agora me volverei às palavras do apóstolo.
1. Os sacerdotes são tomados dentre os homens.
Ele diz isto dos sacerdotes. Daqui deduz-se que Cristo foi verdadeiramente homem. Uma vez que nos encontrávamos demasiadamente afastados de Deus, só havia uma maneira de sermos colocados diante dele - na pessoa de nosso Sacerdote. E isso não poderia suceder, a não ser que ele se fizesse um de nós. 0 fato de o Filho de Deus desfrutar conosco de uma natureza comum não denigre sua dignidade; ao contrário disso, eleva- -a ainda mais para proveito nosso. Visto que ele se fez homem, isso o qualifica a reconciliar-nos com Deus. Com o intuito de provar que ele é o Mediador, Paulo, expressamente, o chama Homem, porque, caso fosse ele tomado dentre os anjos, ou dentre outros seres, não poderíamos ter sido unidos a Deus através dele, já que ele não nos seria acessível.
2. A favor dos homens.
Ora, a segunda sentença consiste em que o sacerdote não ministra especificamente a favor de si próprio, e sim que ele é constituído visando ao bem comum do povo. Aqui temos algo digno de nota, para que saibamos que a salvação de todos nós foi efetuada por, e gravita em torno, do sacerdócio de Cristo. A forma de tal benefício se encontra expressa nas palavras: “nas coisas concernentes a Deus.” É possível haver aqui uma dupla redação, visto que o verbo καθίσταται [ordenar, designar, constituir] pode ser tomado no sentido tanto passivo quanto ativo. Aqueles que o tomam no sentido passivo, traduzem-no assim: “Ele é constituído para essas coisas”, subentendendo, assim, a preposição que governa o substantivo coisas. A redação alternativa me é igualmente satisfatória, ou seja: o sacerdote cuida de, ou ordena, as coisas concernentes a Deus. A construção é mais agradável e o significado, mais completo. Seja qual for a forma pretendida, a intenção do apóstolo é que não podemos ter qualquer relacionamento com Deus, a menos que um sacerdote se faça presente. Uma vez que somos impuros, como nos é possível lidar com as coisas santas? Seremos estranhos a Deus e ao seu culto até que um sacerdote se interponha entre nós e advogue nossa causa.
3. Para oferecer assim dons como sacrifícios.
O terceiro elemento que ele menciona acerca do sacerdote é o oferecimento de dons. Aqui há dois elementos: dons e sacrifícios [vítimas]. Em minha opinião, a primeira palavra inclui os diferentes tipos de sacrifícios e, portanto, é um termo geral. A segunda denota especialmente os sacrifícios expiatórios.
Entretanto, o significado é que o sacerdote, sem um sacrifício, não pode ser um pacificador entre Deus e os homens, pois sem um sacrifício os pecados não são expiados, nem a ira de Deus, pacificada. Daí, sempre que a questão for de reconciliação entre Deus e o homem, este fiador tem de sempre e necessariamente precedê-la.
E assim vemos que os anjos são totalmente incapazes de obter-nos o favor divino, porquanto eles não têm sacrifício a oferecer. O mesmo é o caso com relação aos profetas e apóstolos. Cristo, pois, que é o único que apagou nossos pecados por meio de seu próprio sacrifício, pode reconciliar-nos com Deus.
4. E capaz de condoer-se dos ignorantes e dos que erram.
Esta quarta sentença contém certa relação com a primeira. Não obstante, deve manter-se distinta dela. Na primeira, o apóstolo estava dizendo que a humanidade foi unida a Deus na pessoa de um homem, visto que todos os homens são participantes da mesma carne e da mesma natureza.
Agora ele enfatiza um ponto distinto, a saber: o sacerdote tinha de ser justo e complacente para com os pecadores, já que ele era participante de suas fraquezas.
Os comentaristas, tanto gregos quanto latinos, apresentam variadas interpretações do termo μειριοπαθεΐν [suportar razoavelmente] usado pelo apóstolo aqui.
Creio que sua validade é a mesma se ele dissesse simplesmente que alguém é capaz de συμπάθεια [simpatizar].
Nem todas as coisas atribuídas aos sacerdotes levitas são aplicáveis a Cristo. Sabemos que Cristo estava isento de toda e qualquer infecção do pecado. Nisto ele era distinto de todos os demais, a saber: ele não tinha qualquer necessidade de oferecer sacrifício em favor de si próprio.
Era bastante que levasse sobre si nossas fraquezas, ainda que ele mesmo fosse isento de qualquer mancha de pecado.
No tocante aos antigos sacerdotes levitas, o apóstolo afirma que eram sujeitos à fraqueza humana, e dessa forma, por meio de seus sacrifícios, também expiavam seus próprios pecados, a fim de que fossem não só mais solícitos em relação às transgressões de outros, mas também sofressem com eles.
Esse ofício deve aplicar-se a Cristo até aquele ponto em que se insere o qualificativo previamente mencionado, a saber: que ele participou de nossas fraquezas, porém sem pecado. Ainda que estivesse sempre isento de pecado, no entanto essa experiência das fraquezas anteriormente descrita por si somente é suficientemente poderosa para predispô-lo a socorrer-nos, fazendo-o misericordioso e disposto a perdoar, bem como torná-lo solícito para conosco em nossas misérias.
Eis a suma de tudo isso: Cristo é nosso Irmão não só por causa de sua união com nossa carne e natureza, mas também porque ele é levado, por assim dizer, a conformar-se solidariamente com nossas enfermidades, movido de indulgência e beneplácito.
O particípio δυνάμενος contém mais vigor que capaz de, em nossa linguagem comum. Ele expressa idoneidade ou aptidão. O autor toma “dos ignorantes e que andam em erro” no sentido de pecadores, em consonância com o idioma hebraico.
Os hebreus usam שגגה] shegageh] para toda espécie de ofensa, como teremos ocasião de explicá-lo um pouco mais adiante.
5. E ninguém toma tal honra para si mesmo.
Deve-se notar neste versículo em parte uma semelhança e em parte uma diferença. 0 que torna válido um ofício é a vocação, de modo que ninguém pode exercê-lo correta ou legitimamente sem antes ser eleito por Deus.
Cristo e Arão têm isto em comum: cada um deles foi chamado por Deus. Em contrapartida, entre ambos há esta diferença: enquanto Cristo triunfou de uma forma nova e distinta, tornando-se Sumo Sacerdote para sempre, era evidente que o sacerdócio de Arão fosse temporário, e por isso era indispensável que cessasse.
Então percebemos o objetivo do argumento do apóstolo. Sua intenção é defender o direito do sacerdócio de Cristo. Ele faz isso demonstrando que o mesmo tem Deus por seu Autor. Mas isso não seria suficiente, a menos que estabelecesse que a antiga ordem terminasse para dar lugar a uma nova. Ele prova isso retrocedendo nossa atenção para as condições em que Arão fora designado (porque elas não devem levar-nos para além daquilo que o decreto de Deus permite).
Diligentemente, ele evidencia quanto tempo Deus determinou para a duração dessa antiga ordem. Cristo, pois, é Sumo Sacerdote legítimo, porquanto foi designado por autoridade divina. O que, pois, se deve dizer de Arão e de seus sucessores? Que tiveram tanto direito quanto lhes fora concedido pelo Senhor; mas, não tanto quanto os homens concebem, segundo sua própria fantasia.
Ainda que isso fosse expresso à luz do presente caso, todavia é legítimo extrair daqui um princípio geral, a saber: que não se deve estabelecer na Igreja nenhuma forma de governo segundo o critério humano, senão que os homens devem atentar bem para a ordenação divina; e, ainda mais, devemos seguir um procedimento de eleição preestabelecido, para que ninguém procure satisfazer seus próprios desejos.
Ambos esses pontos têm de ser cuidadosamente observados. O apóstolo está falando aqui não só de pessoas, mas também de ofício. Ele nega, repito, que seja legítimo e santo qualquer ofício inventado pela vontade humana, sem o respaldo da autoridade divina.
De acordo com a promessa de Deus de governar sua Igreja, assim ele reserva para si o direito exclusivo de prescrever a ordem e forma de sua administração. Daqui considero indisputável que o sacerdócio papal é espúrio, já que foi forjado em conformidade com a arte humana. Em parte alguma vemos Deus ordenando que se lhe ofereça agora um sacrifício para o perdão dos pecados. Em parte alguma ordena ele que se designem sacerdotes para tal propósito. Portanto, enquanto o papa instala seus sacerdotes para oferecer sacrifícios, o apóstolo afirma que eles não são mais considerados legítimos, a não ser que, mediante a promulgação de uma lei nova e especial, sejam os mesmos exaltados acima de Cristo, pois ele, de iniciativa própria, não ousou assumir tal honra, senão que esperou pelo mandamento do Pai.
Isso também resultaria bem no caso de pessoas, individualmente, para que ninguém, por iniciativa própria, assuma essa honra para si como um indivíduo, sem que a autoridade pública a preceda. Minha alusão é a ofícios divinamente instituídos. É possível que às vezes alguém não seja chamado por Deus, e que tenha de ser tolerado, quanto que, por um pouco, venha ele a ser aprovado, contanto que o ofício continue santo e aprovado por Deus.
Muitos o furtam, movidos por ambição ou por motivos perversos, de cuja vocação há pouca ou nenhuma evidência. Não devem ser sumariamente rejeitados, especialmente quando não é possível decidir-se através de um concilio público da Igreja.
Ao longo de dois séculos antes do advento de Cristo, prevaleceram as mais detestáveis corrupções no sacerdócio em vigência, e não obstante o direito e a honra, que provinham da vocação divina, permaneceram no próprio ofício, e os homens mesmos eram tolerados, porquanto a liberdade da Igreja fora transtornada.
Daqui se faz evidente que o maior problema está no caráter do ofício, quando os homens inventam para si algo que Deus jamais pensou em ordenar. De todos, os menos toleráveis são os sacrificadores romanistas, cuja tagarelice nenhum outro objetivo tem além da conservação de seus títulos sacros, enquanto eles mesmos os escolheram sem qualquer autoridade da parte de Deus.
5. Tu és meu Filho
Deve-se ter em mente, primeiro e acima de tudo, como nos expressamos no primeiro capítulo, que a geração de Cristo, de que fala o salmista, foi o testemunho que o Pai deu sobre ele entre os homens. A questão aqui não é a relação mútua entre o Pai e o Filho; antes, é a relação com os homens entre os quais ele se evidenciou. Que gênero de Filho Deus nos proclamou? Alguém despido de honra e sem qualquer aptidão? Por certo que não. Ele teria que ser o Mediador entre Deus e os homens. Portanto, sua geração inclui seu sacerdócio.
( Esta passagem, “Tu és meu Filho” etc., neste lugar, é apenas aduzida para mostrar que Cristo era 0 Filho de Deus; Cristo não se honrou, nem se engrandeceu, nem se exaltou (pois aqui δοξάζω é seu significado), senão aquele que lhe disse: “Tu és meu Filho" etc., o honrou ou 0 exaltou. Este é 0 significado da sentença. 0 versículo pode ser assim traduzido:
6. Como também em outro lugar diz. O propósito do apóstolo é expresso aqui de modo mais claro. A passagem, e bem assim todo o Salmo do qual é ela tomada, é bem conhecida. Pois dificilmente haverá em alguma outra parte uma profecia mais clara com referência ao sacerdócio eterno de Cristo e seu reinado.
Os judeus se dão ao trabalho de engendrar todo gênero de objeções capciosas com o intuito de obscurecer a glória de Cristo, mas sem lograrem qualquer êxito. Aplicam-na a Davi, como se fosse ele a quem Deus convida a assentar־se à sua mão direita, contudo tal atitude constitui um exemplo de extrema ignorância.
Bem sabemos que não era lícito aos reis exercer o sacerdócio. Foi precisamente por tal crime de imiscuir-se num ofício que não era seu que Uzias provocou a ira de Deus e foi atingido por lepra [2 Cr 26.18].
Portanto, é claramente incontestável que nem Davi nem qualquer outro dos reis são referidos aqui. Se alguém apresentar uma exceção com base no fato de que os príncipes [bem como os sacerdotes] às vezes são denominados ü'm[kohenim], admito tal alegação como um fato, todavia continuo sustentando que tal idéia não se ajusta bem à presente passagem. A comparação não deixa qualquer dúvida.
Melquisedeque foi o sacerdote de Deus. 0 salmista declara que esse Rei, cuja posição é à destra de Deus, será um כהנו] kohen], segundo a ordem de Melquisedeque. Porventura existe alguém que deixaria de perceber que essa afirmação deva ser considerada uma referência ao sacerdócio?
Como era uma ocorrência rara e quase única que a mesma pessoa exercesse ao mesmo tempo as funções de rei e sacerdote (ao menos era um caso incomum no seio do povo de Deus), Melquisedeque, portanto, surge como um tipo do Messias, como se dissesse: “Sua dignidade real não o impedirá que exerça também a função de sacerdote, já que tem os em Melquisedeque um exemplo semelhante.” Por certo que todos os judeus que possuam alguma honestidade admitirão que esta passagem se refere ao Messias, e não nutrirão dúvida de que seu sacerdócio é o que está aqui compreendido. 0 que no grego se traduz κατά τάξιν [segundo a ordem], no hebraico se traduz דברתי-על] ol-deberti], ambos significando “à semelhança de” ou “segundo a forma de”, e isso confirma o que eu disse: era algo incomum entre o povo de Deus que a mesma pessoa, e ao mesmo tempo, assumisse o ofício de rei e de sacerdote; por isso adiciona-se esse exemplo antigo como prefiguração do Messias. O apóstolo explicará o restante mais detalhadamente no que segue.
( Assim também Cristo, a si mesmo não se exaltou para ser sumo sacerdote, mas aquele que lhe disse: Meu filho és tu, neste dia eu te gerei. Significa 0 mesmo se ele dissesse: “Cristo mesmo não se fez sumo sacerdote, e sim Deus.” E a razão pela qual ele fala de Deus como havendo dito: “Meu Filho” etc., parece ser a seguinte: para mostrar que aquele que 0 fez rei (pois sua referência no Salmo 2 é sua designação ao ofício régio) também o fez sumo sacerdote. E isto é confirmado pela próxima citação do Salmo 110; pois no primeiro versículo ele é mencionado como rei; e, então, no versículo 4, se menciona seu sacerdócio.)
7. O qual, nos dias de sua carne, tendo oferecido orações e súplicas com forte clamor e lágrimas àquele que era capaz de livrá-lo da morte, e tendo sido ouvido por causa de seu santo temor, 8. embora sendo Filho, todavia aprendeu a obediência pelas coisas que sofreu. 9. E tendo sido aperfeiçoado, tornou-se 0 autor da salvação eterna para quantos lhe obedecem; 10. nomeado por Deus sumo sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque. 11. De quem temos muitas coisas que dizer, e difíceis de explicar, visto que vos tornastes morosos para ouvir
7. O qual, nos dias de sua carne.
Como a forma e beleza de Cristo foram especialmente desfiguradas pela cruz, e como os homens não atentam para o propósito de sua humilhação, o apóstolo reitera a questão que previamente apenas tocara de leve, a saber: que sua esplendorosa benevolência resplende do fato de que ele, para nosso bem, se submeteu às nossas enfermidades [ou fraquezas]. Disso se faz evidente que nossa fé é confirmada e sua honra não sofre prejuízo por haver ele levado em si nossos males.
O autor ressalta duas causas por que Cristo tinha que sofrer - uma imediata e a outra final:
. A imediata consiste em que ele aprenderia a obediência
. A final consiste em que, assim, ele seria consagrado Sacerdote para nossa salvação.
Nos dias de sua carne.
Ninguém teria dúvida de que essa expressão deve ser tomada como uma referência à sua vida terrena.
Daí se segue que o termo carne não significa a substância material, e sim a condição de sua vida, como em 1 Coríntios 15.50: “Carne e sangue não podem herdar o reino de Deus.”
Revelam total insanidade os fanáticos que imaginam Cristo como que despido de sua carne, só porque aqui se notifica que ele sobreviveu aos dias de sua carne, pois uma coisa é ser verdadeiro homem, ainda que dotado daquela bem-aventurada imortalidade; outra completamente distinta é achar-se ele sujeito às vicissitudes e fraquezas humanas, as quais Cristo suportou ao longo de sua existência terrena, condição essa da qual agora se desvencilhou, ao ser recebido no céu.
Voltemos agora à nossa matéria. Cristo, sendo o Filho de Deus, procurou obter socorro do Pai, e foi ouvido, contudo sofreu a morte para ser instruído na vereda da obediência.
Aqui há em cada palavra uma importância singular.
Ao dizer “nos dias de sua carne”, ele indica que o tempo de nossas misérias humanas é limitado, notícia que nos comunica não pouca confiança. Seguramente, seria um estado dificílimo, e quase impossível de suportar, se não vislumbrássemos um ponto final de nossos sofrimentos.
As três sentenças que seguem também adicionam considerável conforto.
Cristo, sendo o Filho, eximido da parte comum dos homens em virtude de sua própria dignidade, contudo sujeitou-se a ele por amor de nós. Que mortal dentre nós ousaria agora esquivar-se de suportar a mesma condição? Além disso, há um argumento adicional: ainda quando sejamos oprimidos por adversidades, não somos excluídos do número dos filhos de Deus, ao vermos que adiante de nós vai aquele que, por natureza, é seu único Filho. O fato de sermos contados no número dos filhos [de Deus] só é possível em virtude da graça de nossa adoção, porquanto o único que possui o direito de reivindicar tal honra nos admite em sua comunhão.
Tendo oferecido orações e súplicas.
0 segundo elemento que o autor menciona de Cristo é que, quando chegou o tempo, ele buscou um remédio que o livrasse dos males. Ele diz isso para que ninguém concluísse que Cristo era dotado de um coração de ferro, e que nada sentia. Devemos procurar sempre ver a razão por que algo é expresso.
Se Cristo fosse intocável por qualquer dor, então nenhuma consolação, provinda de seus sofrimentos, nos atingiria. Mas quando ouvimos que ele igualmente suportou as mais amargas agonias em seu espírito, torna-se evidente sua semelhança conosco.
Cristo, diz ele, não suportou a morte e todas as demais tribulações, de tal sorte, como se desdenhasse delas, ou por não se sentir oprimido por algum senso de angústia. Ele orou com lágrimas, dando assim testemunho da suprema angústia de seu espírito.
Por lágrimas e forte clamor, a intenção do apóstolo é expressar a intensidade de sua tristeza, em consonância com o costume normal de fazer algo mediante sinais. Não tenho dúvida de que ele está falando da oração contida nos evangelhos: “Meu Pai, se possível, passe de mim este cálice” [Mt 26.39]. E também daquela outra oração: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” [Mt 27.46].
No segundo dos casos mencionados nos Evangelhos, há um forte clamor. Enquanto que no primeiro não é possível crer que seus olhos hajam secado, já que na imensidão de sua agonia grossas gotas de sangue emanavam de todo seu corpo.
É verdade que ele se achava reduzido a uma condição extrema. Achando-se oprimido por dores reais, deveras orava ardentemente ao Pai para que fosse socorrido.
( 4 “Orações e súplicas” são quase a mesma coisa;
A primeira palavra significa um pedido, uma petição, estritamente, uma oração
A segunda um rogo mais intenso e humilde.
A segunda palavra só se encontra aqui, em todo o Novo Testamento; uma vez na Septuaginta, em Jó 41.3; e uma vez nos apócrifos [2 Macabeus 9.18], Hesychius, como citado por Schleusner, dá πράκλησις, pedido, rogo, como seu significado, e é oriundo de ικέτης, um suplicante.
A palavra ίκετηρίο, aqui usada, significa primeiramente um ramo de oliveira envolto em lã, carregado pelos suplicantes como símbolo de súplica, e daí às vezes usado no sentido de rogo e súplica )
E qual é a aplicação que se deve fazer de tudo isso? É esta: sempre que nossos males nos oprimem e nos torturam , retrocedamos nossa mente para o Filho de Deus que suportou o mesmo fardo.
Enquanto ele marchar adiante de nós, não temos motivo algum para desespero. Ao mesmo tempo, somos advertidos a não buscar nossa salvação, em tempo de angústia, em nenhum outro senão unicamente em Deus. Que melhor guia poderíamos encontrar para oração além do exemplo do próprio Cristo? Ele se dirigiu diretamente ao Pai. 0 apóstolo nos mostra o que devem os fazer, ao dizer que ele endereçou suas orações Àquele que era capaz de livrá-lo da morte. Com isso ele quer dizer que Cristo orou corretamente, já que recorreu ao Deus que é o único Libertador. Lágrimas e clamor nos recomendam fervor e sinceridade na oração. Não devem os orar a Deus seguindo um formalismo sem vida, e sim com ardentes desejos espirituais.
E tendo sido ouvido. Há quem o traduza assim : “seu santo temor”, do que discordo incisivamente.
Primeiramente, o apóstolo usa simplesmente έυλαθείας, sem o pronome seu.
Em segundo lugar, a preposição é από, desde, e não υπέρ, por causa de, ou qualquer outro termo que denote causa.
Visto que no grego εύλάθεια geralmente significa temor ou ansiedade, não tenho dúvida de que o apóstolo quis dizer que Cristo foi ouvido naquilo que ele tem ia, de m odo que, não vencido por esses males, não lhes deu lugar, nem sucumbiu em face da morte. O Filho de Deus condescendeu-se a essa luta, não porque labutasse sob a descrença, a fonte de todos os tem ores, m as porque ele suportava na carne mortal o juízo divino, o terror que não se pode vencer sem extremo esforço. Crisóstomo o interpreta como sendo a dignidade de Cristo que o Pai, de certa forma, reverenciava. Tal idéia, porém, é absurda. Outros o traduzem por piedade. Mas a exposição que já apresentei é muito mais adequada, e dispensa qualquer outro argumento adicional. Ele prossegue adicionando uma terceira sentença, no caso de alguém concluir que, visto que Cristo não foi imediatam ente libertado de suas tribulações, sua oração foi rejeitada. Em tempo algum foi ele privado da misericórdia e socorro divinos. E desse fato podemos deduzir que Deus com freqüência ouve nossas orações, mesmo quando não nos pareça. Assim como não é de nossa competência impor-lhe alguma norma rígida e rápida, tampouco Deus se vê na obrigação de responder nossas petições que lhe façamos mentalmente ou expressas com nossos lábios, todavia ele demonstra ter cuidado de nossas orações em tudo o que nos é necessário para nossa salvação. E assim, quando parecer-nos que som os repelidos de diante de sua face, obterem os muito mais do que se ele nos concedesse tudo o que lhe pedimos. De que forma foi Cristo ouvido naquilo que ele temia, quando enfrentam os aquela morte da qual ele tanto se esquivava? Minha resposta é que devemos atentar para aquilo que constituía seu temor. Por que ele trem ia diante da morte, senão porque via nela a maldição divina, e o fato de que Deus era contra a soma total da culpabilidade humana, e contra os próprios poderes das trevas? Daí seu temor e ansiedade, já que o juízo divino é de tudo o que mais terrifica. Então ele obteve o que desejava, uma vez que emergiu das dores da morte como Vencedor, foi sustentado pela mão salvífica do Pai e, após um breve conflito, granjeou gloriosa vitória sobre Satanás, o pecado e os poderes do inferno.
(Stuart observa com muita razão sobre esta passagem: “Se Jesus morreu, sofreu como um virtuoso comum, e meramente como um mártir em prol da verdade, sem qualquer sofrimento vicário imposto sobre ele, então sua morte não passa de um evento totalmente inexplicável com respeito à maneira de seu comportamento enquanto sofria; e deve-se admitir que as multidões de discípulos humildes, pecaminosos, mansos e mui imperfeitos do cristianismo suplantaram ao seu Senhor em fortaleza, e reuniram firmeza e serena complacência que são requisitos para 0 triunfo sobre as angústias de uma hora mortuária. Mas, quem poderia crer em tal coisa? Ou quem poderia considerar Jesus como um simples sofredor na cruz de maneira ordinária, e explicar os mistérios de seu medonho horror antes e durante as horas de crucifixão?” 0 que se menciona aqui certamente é inexplicável, a não ser que admitamos 0 que nos é claramente ensinado tão amiúde e de modo tão variado na Palavra de Deus, a saber, que Cristo morreu por nossos pecados.)
Às vezes sucede que pedimos por isto, por aquilo, ou por alguma outra coisa, mas com um propósito bem distinto. E, enquanto Deus não nos concede o que pedimos, ele encontra uma maneira de socorrer-nos.
8. Ele aprendeu a obediência.
O primeiro propósito dos sofrimentos de Cristo consistia em que, dessa forma, ele estaria acostumando-se à obediência.
Não que ele fosse compelido a isso pela força, ou que tivesse alguma necessidade de tais práticas, da maneira como se doma a ferocidade dos bois e cavalos.
Ele era plenamente disposto a prestar aquela obediência voluntária que se deve ao Pai.
Ele fez isso em nosso benefício, para apresentar-nos o exemplo e o padrão de sua própria submissão, mesmo em face da própria morte.
Ao mesmo tempo, pode-se dizer realmente que Cristo, por sua morte, aprendeu perfeitamente o que significava obedecer a Deus, já que esse era o ponto no qual ele atingiu sua maior auto-renúncia.
Ele renunciou sua própria vontade e entregou-se de tal modo ao Pai, que espontânea e voluntariamente enfrentou a morte, à qual tanto temia.
Portanto, o sentido consiste em que, pela experiência de seus sofrimentos, Cristo nos ensinou até onde devemos submeter-nos e obedecer a Deus. É justo, pois, que mediante seu exemplo sejamos ensinados e preparados por todo gênero de sofrimentos e, finalmente, pela própria morte, a prestar obediência a Deus.
Aliás, nossa necessidade é ainda muito maior, porque temos uma disposição rebelde e indomável, até que Deus nos convença a levar seu jugo através de aflições como essas. Esse benefício que provém da cruz deve adocicar em nossos corações a amargura proveniente dela.
O que mais se pode desejar além de voltarmos para Deus em plena obediência?
Não é possível suceder tal coisa a não ser por meio da cruz. Pois em tempos de prosperidade corremos expansivamente a rédeas soltas e, na maioria dos casos, quando nos tiram o jugo, manifesta em nós a incontinência de nossa carne. Mas quando nossa vontade é mantida sob repressão, de modo que procuramos agradar a Deus, então nossa obediência realmente se manifesta. A clara prova de nossa perfeita submissão, digo eu, é quando preferimos a morte, à qual Deus nos chama, ainda quando diante dela nos estremeçamos, em vez da vida pela qual naturalmente aspiramos.
9. E tendo sido aperfeiçoado.
0 propósito último, ou mais remoto, como é assim chamado, a saber, por que Cristo tinha que sofrer, foi para que dessa forma ele fosse iniciado em seu sacerdócio.
É como se o apóstolo estivesse dizendo que, suportar a cruz e morrer, eram para Cristo uma solene forma de consagração, indicando assim que todos os seus sofrimentos tinham a ver com nossa salvação. Daqui se deduz que eles de forma alguma denigrem sua dignidade, antes, contribuem para sua glória. Se nossa salvação nos é preciosa, com muito maior honra devemos considerar seu Autor! Esta passagem não só fala do exemplo de Cristo, mas vai além, e afirma que, por meio de sua obediência, ele apagou nossas transgressões; tornou-se o Autor de nossa salvação, já que se fez justo aos olhos de Deus, quando remediou a desobediência de Adão, através de um ato contrário de obediência. “Santificado” se ajusta melhor ao contexto do que “aperfeiçoado”. 0 termo grego é τελειωθείς, que significa ambos os termos. Contudo, visto que a passagem é acerca do sacerdócio, o escritor, de forma apropriada e conveniente, menciona santificação. Cristo mesmo fala assim em outro lugar: “Em favor deles eu me santifico a mim mesmo” [Jo 17.19]. Daqui se faz evidente que a referência é justamente à sua natureza humana, na qual ele exerceu o ofício de Sacerdote e na qual ele sofreu.7 Para quantos lhe obedecem. Se desejamos que a obediência de Cristo nos seja proveitosa, então devemos imitá-la.
Para quantos lhe obedecem.
Se desejamos que a obediência de Cristo nos seja proveitosa, então devemos imitá-la. 0 apóstolo subentende que os frutos dela não vêm a qualquer um, senão somente àqueles que são obedientes. Ao dizer isso, ele nos recomenda a fé, pois nem ele nem seus benefícios se tornam nossos, a não ser na medida em que os recebemos, a ele e a seus benefícios, por meio da fé. Ao mesmo tempo, o autor inseriu um termo universal - para quantos - a fim de mostrar que ninguém que prove ser atento e obediente ao evangelho de Cristo é excluído desta salvação.
10. Nomeado por Deus.
Como se fazia necessário que o autor desse seguimento à com paração entre Cristo e Melquisedeque, por haver dissertado sobre ela só de passagem , e para incitar a m ente dos judeus a prestar mais atenção, ele agora passa a uma digressão e ao mesmo tempo retém o argumento principal.
11. Portanto, ele adiciona um prefácio a fim de expressar que tinha muito a dizer, mas deveriam estar preparados para que a palavra que lhes dirigia não fosse em vão. Ele os adverte, dizendo que 0 que tinha a lhes dizer seria difícil de ouvir, não para afugentá-los, mas para aguçar sua atenção. Como sucede que aquilo que se nos afigura fácil, geralmente nos torna lerdos, assim som os aptos a ouvir mais atentam ente ao nos defrontarmos com algo que se nos afigura obscuro. Ele aponta para eles como a causa da dificuldade, não o tema. Aliás, Deus trata conosco de uma forma tão clara e isenta de ambiguidade que sua Palavra é com razão denominada de luz. Seu brilho, contudo, é ofuscado por nossas trevas.8 Isso sucede em parte por causa de nosso embotamento e em parte por causa de nossa leviandade. A pesar de sermos mais do que obtusos em nosso entendimento da doutrina de Deus, há ainda que adicionar a esse vício a depravação de nossos afetos. Aplicamos nossa m ente mais à vaidade do que à verdade de Deus. Somos continuam ente impedidos, ou por nossa rebelião, ou pelos cuidados deste mundo, ou pela luxúria de nossa carne.
De quem
1. Porque todo sumo sacerdote, sendo tomado dentre os homens, é constituído nas coisas concernentes a Deus, a favor dos homens, para oferecer assim dons como sacrifícios pelos pecados, 2. e capaz de condoer-se dos ignorantes e dos que erram, pois que ele mesmo também está rodeado de fraquezas. 3. E, por essa razão, deve oferecer sacrifícios pelos pecados, assim do povo, como de si mesmo. 4. E ninguém toma tal honra para si mesmo, a não ser quando chamado por Deus, como aconteceu com Arão. 5. Assim, também Cristo não glorificou a si mesmo para tornar-se sumo sacerdote, mas aquele que lhe disse: Tu és meu Filho, eu hoje te gerei; 6. como em outro lugar também diz: Tu és sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquisedeque.
1. Porque todo sumo sacerdote.
Ele traça uma comparação entre Cristo e os sacerdotes levitas e mostra em que ponto se assemelham e a diferença que existe entre eles.
E o objetivo de todo o discurso é mostrar qual de fato é o ofício de Cristo, e também mostrar que tudo o que foi instituído sob a lei, foi instituído por sua causa.
Daqui o apóstolo avança com o intuito de finalmente mostrar que o antigo sacerdócio foi abolido.
Em primeiro lugar ele declara que os sacerdotes eram “tomados dentre os homens
Em segundo lugar que eles não agiam particularmente, e sim que oficiavam em favor de todo o povo
Em terceiro lugar, que não compareciam diante de Deus de mãos vazias, e sim ocupadas com sacrifícios
Em quarto lugar, que não estavam isentos de nossas fraquezas, para que pudessem, com melhor disposição, socorrer-nos em nossas tribulações;
Em quinto lugar,não deviam lançar-se precipitadamente ao desempenho de seu ofício, e que então só desfrutavam de uma honra legítima quando fossem eleitos para o mesmo e aprovados por Deus.
Tratemos agora, sucintamente, de cada um desses pontos.
Antes de agirmos assim, devemos, contudo, expor a ignorância daqueles que aplicam esses princípios ao nosso tempo, como se hoje houvesse a mesma necessidade de termos sacerdotes para o oferecimento de sacrifícios.
Ao mesmo tempo, não há necessidade, aqui, de uma longa refutação. Que maior evidência há do que a verdade encontrada em Cristo, a qual está sendo comparada com seus tipos, os quais eram anteriores a ela em tempo e que agora cessaram?
Mas isso transparecerá ainda mais plenamente à luz de todo o contexto. Quão ridículo é o procedimento dos que pretendem encontrar nesta passagem apoio para o sacrifício da missa!
Agora me volverei às palavras do apóstolo.
1. Os sacerdotes são tomados dentre os homens.
Ele diz isto dos sacerdotes. Daqui deduz-se que Cristo foi verdadeiramente homem. Uma vez que nos encontrávamos demasiadamente afastados de Deus, só havia uma maneira de sermos colocados diante dele - na pessoa de nosso Sacerdote. E isso não poderia suceder, a não ser que ele se fizesse um de nós. 0 fato de o Filho de Deus desfrutar conosco de uma natureza comum não denigre sua dignidade; ao contrário disso, eleva- -a ainda mais para proveito nosso. Visto que ele se fez homem, isso o qualifica a reconciliar-nos com Deus. Com o intuito de provar que ele é o Mediador, Paulo, expressamente, o chama Homem, porque, caso fosse ele tomado dentre os anjos, ou dentre outros seres, não poderíamos ter sido unidos a Deus através dele, já que ele não nos seria acessível.
2. A favor dos homens.
Ora, a segunda sentença consiste em que o sacerdote não ministra especificamente a favor de si próprio, e sim que ele é constituído visando ao bem comum do povo. Aqui temos algo digno de nota, para que saibamos que a salvação de todos nós foi efetuada por, e gravita em torno, do sacerdócio de Cristo. A forma de tal benefício se encontra expressa nas palavras: “nas coisas concernentes a Deus.” É possível haver aqui uma dupla redação, visto que o verbo καθίσταται [ordenar, designar, constituir] pode ser tomado no sentido tanto passivo quanto ativo. Aqueles que o tomam no sentido passivo, traduzem-no assim: “Ele é constituído para essas coisas”, subentendendo, assim, a preposição que governa o substantivo coisas. A redação alternativa me é igualmente satisfatória, ou seja: o sacerdote cuida de, ou ordena, as coisas concernentes a Deus. A construção é mais agradável e o significado, mais completo. Seja qual for a forma pretendida, a intenção do apóstolo é que não podemos ter qualquer relacionamento com Deus, a menos que um sacerdote se faça presente. Uma vez que somos impuros, como nos é possível lidar com as coisas santas? Seremos estranhos a Deus e ao seu culto até que um sacerdote se interponha entre nós e advogue nossa causa.
3. Para oferecer assim dons como sacrifícios.
O terceiro elemento que ele menciona acerca do sacerdote é o oferecimento de dons. Aqui há dois elementos: dons e sacrifícios [vítimas]. Em minha opinião, a primeira palavra inclui os diferentes tipos de sacrifícios e, portanto, é um termo geral. A segunda denota especialmente os sacrifícios expiatórios.
Entretanto, o significado é que o sacerdote, sem um sacrifício, não pode ser um pacificador entre Deus e os homens, pois sem um sacrifício os pecados não são expiados, nem a ira de Deus, pacificada. Daí, sempre que a questão for de reconciliação entre Deus e o homem, este fiador tem de sempre e necessariamente precedê-la.
E assim vemos que os anjos são totalmente incapazes de obter-nos o favor divino, porquanto eles não têm sacrifício a oferecer. O mesmo é o caso com relação aos profetas e apóstolos. Cristo, pois, que é o único que apagou nossos pecados por meio de seu próprio sacrifício, pode reconciliar-nos com Deus.
4. E capaz de condoer-se dos ignorantes e dos que erram.
Esta quarta sentença contém certa relação com a primeira. Não obstante, deve manter-se distinta dela. Na primeira, o apóstolo estava dizendo que a humanidade foi unida a Deus na pessoa de um homem, visto que todos os homens são participantes da mesma carne e da mesma natureza.
Agora ele enfatiza um ponto distinto, a saber: o sacerdote tinha de ser justo e complacente para com os pecadores, já que ele era participante de suas fraquezas.
Os comentaristas, tanto gregos quanto latinos, apresentam variadas interpretações do termo μειριοπαθεΐν [suportar razoavelmente] usado pelo apóstolo aqui.
Creio que sua validade é a mesma se ele dissesse simplesmente que alguém é capaz de συμπάθεια [simpatizar].
Nem todas as coisas atribuídas aos sacerdotes levitas são aplicáveis a Cristo. Sabemos que Cristo estava isento de toda e qualquer infecção do pecado. Nisto ele era distinto de todos os demais, a saber: ele não tinha qualquer necessidade de oferecer sacrifício em favor de si próprio.
Era bastante que levasse sobre si nossas fraquezas, ainda que ele mesmo fosse isento de qualquer mancha de pecado.
No tocante aos antigos sacerdotes levitas, o apóstolo afirma que eram sujeitos à fraqueza humana, e dessa forma, por meio de seus sacrifícios, também expiavam seus próprios pecados, a fim de que fossem não só mais solícitos em relação às transgressões de outros, mas também sofressem com eles.
Esse ofício deve aplicar-se a Cristo até aquele ponto em que se insere o qualificativo previamente mencionado, a saber: que ele participou de nossas fraquezas, porém sem pecado. Ainda que estivesse sempre isento de pecado, no entanto essa experiência das fraquezas anteriormente descrita por si somente é suficientemente poderosa para predispô-lo a socorrer-nos, fazendo-o misericordioso e disposto a perdoar, bem como torná-lo solícito para conosco em nossas misérias.
Eis a suma de tudo isso: Cristo é nosso Irmão não só por causa de sua união com nossa carne e natureza, mas também porque ele é levado, por assim dizer, a conformar-se solidariamente com nossas enfermidades, movido de indulgência e beneplácito.
O particípio δυνάμενος contém mais vigor que capaz de, em nossa linguagem comum. Ele expressa idoneidade ou aptidão. O autor toma “dos ignorantes e que andam em erro” no sentido de pecadores, em consonância com o idioma hebraico.
Os hebreus usam שגגה] shegageh] para toda espécie de ofensa, como teremos ocasião de explicá-lo um pouco mais adiante.
5. E ninguém toma tal honra para si mesmo.
Deve-se notar neste versículo em parte uma semelhança e em parte uma diferença. 0 que torna válido um ofício é a vocação, de modo que ninguém pode exercê-lo correta ou legitimamente sem antes ser eleito por Deus.
Cristo e Arão têm isto em comum: cada um deles foi chamado por Deus. Em contrapartida, entre ambos há esta diferença: enquanto Cristo triunfou de uma forma nova e distinta, tornando-se Sumo Sacerdote para sempre, era evidente que o sacerdócio de Arão fosse temporário, e por isso era indispensável que cessasse.
Então percebemos o objetivo do argumento do apóstolo. Sua intenção é defender o direito do sacerdócio de Cristo. Ele faz isso demonstrando que o mesmo tem Deus por seu Autor. Mas isso não seria suficiente, a menos que estabelecesse que a antiga ordem terminasse para dar lugar a uma nova. Ele prova isso retrocedendo nossa atenção para as condições em que Arão fora designado (porque elas não devem levar-nos para além daquilo que o decreto de Deus permite).
Diligentemente, ele evidencia quanto tempo Deus determinou para a duração dessa antiga ordem. Cristo, pois, é Sumo Sacerdote legítimo, porquanto foi designado por autoridade divina. O que, pois, se deve dizer de Arão e de seus sucessores? Que tiveram tanto direito quanto lhes fora concedido pelo Senhor; mas, não tanto quanto os homens concebem, segundo sua própria fantasia.
Ainda que isso fosse expresso à luz do presente caso, todavia é legítimo extrair daqui um princípio geral, a saber: que não se deve estabelecer na Igreja nenhuma forma de governo segundo o critério humano, senão que os homens devem atentar bem para a ordenação divina; e, ainda mais, devemos seguir um procedimento de eleição preestabelecido, para que ninguém procure satisfazer seus próprios desejos.
Ambos esses pontos têm de ser cuidadosamente observados. O apóstolo está falando aqui não só de pessoas, mas também de ofício. Ele nega, repito, que seja legítimo e santo qualquer ofício inventado pela vontade humana, sem o respaldo da autoridade divina.
De acordo com a promessa de Deus de governar sua Igreja, assim ele reserva para si o direito exclusivo de prescrever a ordem e forma de sua administração. Daqui considero indisputável que o sacerdócio papal é espúrio, já que foi forjado em conformidade com a arte humana. Em parte alguma vemos Deus ordenando que se lhe ofereça agora um sacrifício para o perdão dos pecados. Em parte alguma ordena ele que se designem sacerdotes para tal propósito. Portanto, enquanto o papa instala seus sacerdotes para oferecer sacrifícios, o apóstolo afirma que eles não são mais considerados legítimos, a não ser que, mediante a promulgação de uma lei nova e especial, sejam os mesmos exaltados acima de Cristo, pois ele, de iniciativa própria, não ousou assumir tal honra, senão que esperou pelo mandamento do Pai.
Isso também resultaria bem no caso de pessoas, individualmente, para que ninguém, por iniciativa própria, assuma essa honra para si como um indivíduo, sem que a autoridade pública a preceda. Minha alusão é a ofícios divinamente instituídos. É possível que às vezes alguém não seja chamado por Deus, e que tenha de ser tolerado, quanto que, por um pouco, venha ele a ser aprovado, contanto que o ofício continue santo e aprovado por Deus.
Muitos o furtam, movidos por ambição ou por motivos perversos, de cuja vocação há pouca ou nenhuma evidência. Não devem ser sumariamente rejeitados, especialmente quando não é possível decidir-se através de um concilio público da Igreja.
Ao longo de dois séculos antes do advento de Cristo, prevaleceram as mais detestáveis corrupções no sacerdócio em vigência, e não obstante o direito e a honra, que provinham da vocação divina, permaneceram no próprio ofício, e os homens mesmos eram tolerados, porquanto a liberdade da Igreja fora transtornada.
Daqui se faz evidente que o maior problema está no caráter do ofício, quando os homens inventam para si algo que Deus jamais pensou em ordenar. De todos, os menos toleráveis são os sacrificadores romanistas, cuja tagarelice nenhum outro objetivo tem além da conservação de seus títulos sacros, enquanto eles mesmos os escolheram sem qualquer autoridade da parte de Deus.
5. Tu és meu Filho
lho.
É possível que essa afirmação pareça um tan-
to forçada, pois uma vez admitido que Cristo foi gerado por Deus, o
Pai, não foi por isso que ele foi ordenado Sumo Sacerdote. Mas se le-
varmos em conta o propósito pelo qual Cristo se revelou ao mundo,
se fará plenamente patente que esse qualificativo lhe pertence por ne-
cessidade. Deve-se ter em mente, primeiro e acima de tudo, como nos
expressamos no primeiro capítulo, que a geração de Cristo, de que fala
o salmista, foi o testemunho que o Pai deu sobre ele entre os homens.
A questão aqui não é a relação mútua entre o Pai e o Filho; antes, é a re-
lação com os homens entre os quais ele se evidenciou. Que gênero de
Filho Deus nos proclamou? Alguém despido de honra e sem qualquer
aptidão? Por certo que não. Ele teria que ser o Mediador entre Deus e
os homens. Portanto, sua geração inclui seu sacerdócio.
É possível que essa afirmação pareça um tanto forçada, pois uma vez admitido que Cristo foi gerado por Deus, o
Pai, não foi por isso que ele foi ordenado Sumo Sacerdote. Mas se levarmos em conta o propósito pelo qual Cristo se revelou ao mundo,
se fará plenamente patente que esse qualificativo lhe pertence por necessidade.Deve-se ter em mente, primeiro e acima de tudo, como nos expressamos no primeiro capítulo, que a geração de Cristo, de que fala o salmista, foi o testemunho que o Pai deu sobre ele entre os homens. A questão aqui não é a relação mútua entre o Pai e o Filho; antes, é a relação com os homens entre os quais ele se evidenciou. Que gênero de Filho Deus nos proclamou? Alguém despido de honra e sem qualquer aptidão? Por certo que não. Ele teria que ser o Mediador entre Deus e os homens. Portanto, sua geração inclui seu sacerdócio.
( Esta passagem, “Tu és meu Filho” etc., neste lugar, é apenas aduzida para mostrar que Cristo era 0 Filho de Deus; Cristo não se honrou, nem se engrandeceu, nem se exaltou (pois aqui δοξάζω é seu significado), senão aquele que lhe disse: “Tu és meu Filho" etc., o honrou ou 0 exaltou. Este é 0 significado da sentença. 0 versículo pode ser assim traduzido:
6. Como também em outro lugar diz. O propósito do apóstolo é expresso aqui de modo mais claro. A passagem, e bem assim todo o Salmo do qual é ela tomada, é bem conhecida. Pois dificilmente haverá em alguma outra parte uma profecia mais clara com referência ao sacerdócio eterno de Cristo e seu reinado.
Os judeus se dão ao trabalho de engendrar todo gênero de objeções capciosas com o intuito de obscurecer a glória de Cristo, mas sem lograrem qualquer êxito. Aplicam-na a Davi, como se fosse ele a quem Deus convida a assentar־se à sua mão direita, contudo tal atitude constitui um exemplo de extrema ignorância.
Bem sabemos que não era lícito aos reis exercer o sacerdócio. Foi precisamente por tal crime de imiscuir-se num ofício que não era seu que Uzias provocou a ira de Deus e foi atingido por lepra [2 Cr 26.18].
Portanto, é claramente incontestável que nem Davi nem qualquer outro dos reis são referidos aqui. Se alguém apresentar uma exceção com base no fato de que os príncipes [bem como os sacerdotes] às vezes são denominados ü'm[kohenim], admito tal alegação como um fato, todavia continuo sustentando que tal idéia não se ajusta bem à presente passagem. A comparação não deixa qualquer dúvida.
Melquisedeque foi o sacerdote de Deus. 0 salmista declara que esse Rei, cuja posição é à destra de Deus, será um כהנו] kohen], segundo a ordem de Melquisedeque. Porventura existe alguém que deixaria de perceber que essa afirmação deva ser considerada uma referência ao sacerdócio?
Como era uma ocorrência rara e quase única que a mesma pessoa exercesse ao mesmo tempo as funções de rei e sacerdote (ao menos era um caso incomum no seio do povo de Deus), Melquisedeque, portanto, surge como um tipo do Messias, como se dissesse: “Sua dignidade real não o impedirá que exerça também a função de sacerdote, já que tem os em Melquisedeque um exemplo semelhante.” Por certo que todos os judeus que possuam alguma honestidade admitirão que esta passagem se refere ao Messias, e não nutrirão dúvida de que seu sacerdócio é o que está aqui compreendido. 0 que no grego se traduz κατά τάξιν [segundo a ordem], no hebraico se traduz דברתי-על] ol-deberti], ambos significando “à semelhança de” ou “segundo a forma de”, e isso confirma o que eu disse: era algo incomum entre o povo de Deus que a mesma pessoa, e ao mesmo tempo, assumisse o ofício de rei e de sacerdote; por isso adiciona-se esse exemplo antigo como prefiguração do Messias. O apóstolo explicará o restante mais detalhadamente no que segue.
( Assim também Cristo, a si mesmo não se exaltou para ser sumo sacerdote, mas aquele que lhe disse: Meu filho és tu, neste dia eu te gerei. Significa 0 mesmo se ele dissesse: “Cristo mesmo não se fez sumo sacerdote, e sim Deus.” E a razão pela qual ele fala de Deus como havendo dito: “Meu Filho” etc., parece ser a seguinte: para mostrar que aquele que 0 fez rei (pois sua referência no Salmo 2 é sua designação ao ofício régio) também o fez sumo sacerdote. E isto é confirmado pela próxima citação do Salmo 110; pois no primeiro versículo ele é mencionado como rei; e, então, no versículo 4, se menciona seu sacerdócio.)
7. O qual, nos dias de sua carne, tendo oferecido orações e súplicas com forte clamor e lágrimas àquele que era capaz de livrá-lo da morte, e tendo sido ouvido por causa de seu santo temor, 8. embora sendo Filho, todavia aprendeu a obediência pelas coisas que sofreu. 9. E tendo sido aperfeiçoado, tornou-se 0 autor da salvação eterna para quantos lhe obedecem; 10. nomeado por Deus sumo sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque. 11. De quem temos muitas coisas que dizer, e difíceis de explicar, visto que vos tornastes morosos para ouvir
7. O qual, nos dias de sua carne.
Como a forma e beleza de Cristo foram especialmente desfiguradas pela cruz, e como os homens não atentam para o propósito de sua humilhação, o apóstolo reitera a questão que previamente apenas tocara de leve, a saber: que sua esplendorosa benevolência resplende do fato de que ele, para nosso bem, se submeteu às nossas enfermidades [ou fraquezas]. Disso se faz evidente que nossa fé é confirmada e sua honra não sofre prejuízo por haver ele levado em si nossos males.
O autor ressalta duas causas por que Cristo tinha que sofrer - uma imediata e a outra final:
. A imediata consiste em que ele aprenderia a obediência
. A final consiste em que, assim, ele seria consagrado Sacerdote para nossa salvação.
Nos dias de sua carne.
Ninguém teria dúvida de que essa expressão deve ser tomada como uma referência à sua vida terrena.
Daí se segue que o termo carne não significa a substância material, e sim a condição de sua vida, como em 1 Coríntios 15.50: “Carne e sangue não podem herdar o reino de Deus.”
Revelam total insanidade os fanáticos que imaginam Cristo como que despido de sua carne, só porque aqui se notifica que ele sobreviveu aos dias de sua carne, pois uma coisa é ser verdadeiro homem, ainda que dotado daquela bem-aventurada imortalidade; outra completamente distinta é achar-se ele sujeito às vicissitudes e fraquezas humanas, as quais Cristo suportou ao longo de sua existência terrena, condição essa da qual agora se desvencilhou, ao ser recebido no céu.
Voltemos agora à nossa matéria. Cristo, sendo o Filho de Deus, procurou obter socorro do Pai, e foi ouvido, contudo sofreu a morte para ser instruído na vereda da obediência.
Aqui há em cada palavra uma importância singular.
Ao dizer “nos dias de sua carne”, ele indica que o tempo de nossas misérias humanas é limitado, notícia que nos comunica não pouca confiança. Seguramente, seria um estado dificílimo, e quase impossível de suportar, se não vislumbrássemos um ponto final de nossos sofrimentos.
As três sentenças que seguem também adicionam considerável conforto.
Cristo, sendo o Filho, eximido da parte comum dos homens em virtude de sua própria dignidade, contudo sujeitou-se a ele por amor de nós. Que mortal dentre nós ousaria agora esquivar-se de suportar a mesma condição? Além disso, há um argumento adicional: ainda quando sejamos oprimidos por adversidades, não somos excluídos do número dos filhos de Deus, ao vermos que adiante de nós vai aquele que, por natureza, é seu único Filho. O fato de sermos contados no número dos filhos [de Deus] só é possível em virtude da graça de nossa adoção, porquanto o único que possui o direito de reivindicar tal honra nos admite em sua comunhão.
Tendo oferecido orações e súplicas.
0 segundo elemento que o autor menciona de Cristo é que, quando chegou o tempo, ele buscou um remédio que o livrasse dos males. Ele diz isso para que ninguém concluísse que Cristo era dotado de um coração de ferro, e que nada sentia. Devemos procurar sempre ver a razão por que algo é expresso.
Se Cristo fosse intocável por qualquer dor, então nenhuma consolação, provinda de seus sofrimentos, nos atingiria. Mas quando ouvimos que ele igualmente suportou as mais amargas agonias em seu espírito, torna-se evidente sua semelhança conosco.
Cristo, diz ele, não suportou a morte e todas as demais tribulações, de tal sorte, como se desdenhasse delas, ou por não se sentir oprimido por algum senso de angústia. Ele orou com lágrimas, dando assim testemunho da suprema angústia de seu espírito.
Por lágrimas e forte clamor, a intenção do apóstolo é expressar a intensidade de sua tristeza, em consonância com o costume normal de fazer algo mediante sinais. Não tenho dúvida de que ele está falando da oração contida nos evangelhos: “Meu Pai, se possível, passe de mim este cálice” [Mt 26.39]. E também daquela outra oração: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” [Mt 27.46].
No segundo dos casos mencionados nos Evangelhos, há um forte clamor. Enquanto que no primeiro não é possível crer que seus olhos hajam secado, já que na imensidão de sua agonia grossas gotas de sangue emanavam de todo seu corpo.
É verdade que ele se achava reduzido a uma condição extrema. Achando-se oprimido por dores reais, deveras orava ardentemente ao Pai para que fosse socorrido.
( 4 “Orações e súplicas” são quase a mesma coisa;
A primeira palavra significa um pedido, uma petição, estritamente, uma oração
A segunda um rogo mais intenso e humilde.
A segunda palavra só se encontra aqui, em todo o Novo Testamento; uma vez na Septuaginta, em Jó 41.3; e uma vez nos apócrifos [2 Macabeus 9.18], Hesychius, como citado por Schleusner, dá πράκλησις, pedido, rogo, como seu significado, e é oriundo de ικέτης, um suplicante.
A palavra ίκετηρίο, aqui usada, significa primeiramente um ramo de oliveira envolto em lã, carregado pelos suplicantes como símbolo de súplica, e daí às vezes usado no sentido de rogo e súplica )
E qual é a aplicação que se deve fazer de tudo isso? É esta: sempre que nossos males nos oprimem e nos torturam , retrocedamos nossa mente para o Filho de Deus que suportou o mesmo fardo.
Enquanto ele marchar adiante de nós, não temos motivo algum para desespero. Ao mesmo tempo, somos advertidos a não buscar nossa salvação, em tempo de angústia, em nenhum outro senão unicamente em Deus. Que melhor guia poderíamos encontrar para oração além do exemplo do próprio Cristo? Ele se dirigiu diretamente ao Pai. 0 apóstolo nos mostra o que devem os fazer, ao dizer que ele endereçou suas orações Àquele que era capaz de livrá-lo da morte. Com isso ele quer dizer que Cristo orou corretamente, já que recorreu ao Deus que é o único Libertador. Lágrimas e clamor nos recomendam fervor e sinceridade na oração. Não devem os orar a Deus seguindo um formalismo sem vida, e sim com ardentes desejos espirituais.
E tendo sido ouvido. Há quem o traduza assim : “seu santo temor”, do que discordo incisivamente.
Primeiramente, o apóstolo usa simplesmente έυλαθείας, sem o pronome seu.
Em segundo lugar, a preposição é από, desde, e não υπέρ, por causa de, ou qualquer outro termo que denote causa.
Visto que no grego εύλάθεια geralmente significa temor ou ansiedade, não tenho dúvida de que o apóstolo quis dizer que Cristo foi ouvido naquilo que ele tem ia, de m odo que, não vencido por esses males, não lhes deu lugar, nem sucumbiu em face da morte. O Filho de Deus condescendeu-se a essa luta, não porque labutasse sob a descrença, a fonte de todos os tem ores, m as porque ele suportava na carne mortal o juízo divino, o terror que não se pode vencer sem extremo esforço. Crisóstomo o interpreta como sendo a dignidade de Cristo que o Pai, de certa forma, reverenciava. Tal idéia, porém, é absurda. Outros o traduzem por piedade. Mas a exposição que já apresentei é muito mais adequada, e dispensa qualquer outro argumento adicional. Ele prossegue adicionando uma terceira sentença, no caso de alguém concluir que, visto que Cristo não foi imediatam ente libertado de suas tribulações, sua oração foi rejeitada. Em tempo algum foi ele privado da misericórdia e socorro divinos. E desse fato podemos deduzir que Deus com freqüência ouve nossas orações, mesmo quando não nos pareça. Assim como não é de nossa competência impor-lhe alguma norma rígida e rápida, tampouco Deus se vê na obrigação de responder nossas petições que lhe façamos mentalmente ou expressas com nossos lábios, todavia ele demonstra ter cuidado de nossas orações em tudo o que nos é necessário para nossa salvação. E assim, quando parecer-nos que som os repelidos de diante de sua face, obterem os muito mais do que se ele nos concedesse tudo o que lhe pedimos. De que forma foi Cristo ouvido naquilo que ele temia, quando enfrentam os aquela morte da qual ele tanto se esquivava? Minha resposta é que devemos atentar para aquilo que constituía seu temor. Por que ele trem ia diante da morte, senão porque via nela a maldição divina, e o fato de que Deus era contra a soma total da culpabilidade humana, e contra os próprios poderes das trevas? Daí seu temor e ansiedade, já que o juízo divino é de tudo o que mais terrifica. Então ele obteve o que desejava, uma vez que emergiu das dores da morte como Vencedor, foi sustentado pela mão salvífica do Pai e, após um breve conflito, granjeou gloriosa vitória sobre Satanás, o pecado e os poderes do inferno.
(Stuart observa com muita razão sobre esta passagem: “Se Jesus morreu, sofreu como um virtuoso comum, e meramente como um mártir em prol da verdade, sem qualquer sofrimento vicário imposto sobre ele, então sua morte não passa de um evento totalmente inexplicável com respeito à maneira de seu comportamento enquanto sofria; e deve-se admitir que as multidões de discípulos humildes, pecaminosos, mansos e mui imperfeitos do cristianismo suplantaram ao seu Senhor em fortaleza, e reuniram firmeza e serena complacência que são requisitos para 0 triunfo sobre as angústias de uma hora mortuária. Mas, quem poderia crer em tal coisa? Ou quem poderia considerar Jesus como um simples sofredor na cruz de maneira ordinária, e explicar os mistérios de seu medonho horror antes e durante as horas de crucifixão?” 0 que se menciona aqui certamente é inexplicável, a não ser que admitamos 0 que nos é claramente ensinado tão amiúde e de modo tão variado na Palavra de Deus, a saber, que Cristo morreu por nossos pecados.)
Às vezes sucede que pedimos por isto, por aquilo, ou por alguma outra coisa, mas com um propósito bem distinto. E, enquanto Deus não nos concede o que pedimos, ele encontra uma maneira de socorrer-nos.
8. Ele aprendeu a obediência.
O primeiro propósito dos sofrimentos de Cristo consistia em que, dessa forma, ele estaria acostumando-se à obediência.
Não que ele fosse compelido a isso pela força, ou que tivesse alguma necessidade de tais práticas, da maneira como se doma a ferocidade dos bois e cavalos.
Ele era plenamente disposto a prestar aquela obediência voluntária que se deve ao Pai.
Ele fez isso em nosso benefício, para apresentar-nos o exemplo e o padrão de sua própria submissão, mesmo em face da própria morte.
Ao mesmo tempo, pode-se dizer realmente que Cristo, por sua morte, aprendeu perfeitamente o que significava obedecer a Deus, já que esse era o ponto no qual ele atingiu sua maior auto-renúncia.
Ele renunciou sua própria vontade e entregou-se de tal modo ao Pai, que espontânea e voluntariamente enfrentou a morte, à qual tanto temia.
Portanto, o sentido consiste em que, pela experiência de seus sofrimentos, Cristo nos ensinou até onde devemos submeter-nos e obedecer a Deus. É justo, pois, que mediante seu exemplo sejamos ensinados e preparados por todo gênero de sofrimentos e, finalmente, pela própria morte, a prestar obediência a Deus.
Aliás, nossa necessidade é ainda muito maior, porque temos uma disposição rebelde e indomável, até que Deus nos convença a levar seu jugo através de aflições como essas. Esse benefício que provém da cruz deve adocicar em nossos corações a amargura proveniente dela.
O que mais se pode desejar além de voltarmos para Deus em plena obediência?
Não é possível suceder tal coisa a não ser por meio da cruz. Pois em tempos de prosperidade corremos expansivamente a rédeas soltas e, na maioria dos casos, quando nos tiram o jugo, manifesta em nós a incontinência de nossa carne. Mas quando nossa vontade é mantida sob repressão, de modo que procuramos agradar a Deus, então nossa obediência realmente se manifesta. A clara prova de nossa perfeita submissão, digo eu, é quando preferimos a morte, à qual Deus nos chama, ainda quando diante dela nos estremeçamos, em vez da vida pela qual naturalmente aspiramos.
9. E tendo sido aperfeiçoado.
0 propósito último, ou mais remoto, como é assim chamado, a saber, por que Cristo tinha que sofrer, foi para que dessa forma ele fosse iniciado em seu sacerdócio.
É como se o apóstolo estivesse dizendo que, suportar a cruz e morrer, eram para Cristo uma solene forma de consagração, indicando assim que todos os seus sofrimentos tinham a ver com nossa salvação. Daqui se deduz que eles de forma alguma denigrem sua dignidade, antes, contribuem para sua glória. Se nossa salvação nos é preciosa, com muito maior honra devemos considerar seu Autor! Esta passagem não só fala do exemplo de Cristo, mas vai além, e afirma que, por meio de sua obediência, ele apagou nossas transgressões; tornou-se o Autor de nossa salvação, já que se fez justo aos olhos de Deus, quando remediou a desobediência de Adão, através de um ato contrário de obediência. “Santificado” se ajusta melhor ao contexto do que “aperfeiçoado”. 0 termo grego é τελειωθείς, que significa ambos os termos. Contudo, visto que a passagem é acerca do sacerdócio, o escritor, de forma apropriada e conveniente, menciona santificação. Cristo mesmo fala assim em outro lugar: “Em favor deles eu me santifico a mim mesmo” [Jo 17.19]. Daqui se faz evidente que a referência é justamente à sua natureza humana, na qual ele exerceu o ofício de Sacerdote e na qual ele sofreu.7 Para quantos lhe obedecem. Se desejamos que a obediência de Cristo nos seja proveitosa, então devemos imitá-la.
Para quantos lhe obedecem.
Se desejamos que a obediência de Cristo nos seja proveitosa, então devemos imitá-la. 0 apóstolo subentende que os frutos dela não vêm a qualquer um, senão somente àqueles que são obedientes. Ao dizer isso, ele nos recomenda a fé, pois nem ele nem seus benefícios se tornam nossos, a não ser na medida em que os recebemos, a ele e a seus benefícios, por meio da fé. Ao mesmo tempo, o autor inseriu um termo universal - para quantos - a fim de mostrar que ninguém que prove ser atento e obediente ao evangelho de Cristo é excluído desta salvação.
10. Nomeado por Deus.
Como se fazia necessário que o autor desse seguimento à com paração entre Cristo e Melquisedeque, por haver dissertado sobre ela só de passagem , e para incitar a m ente dos judeus a prestar mais atenção, ele agora passa a uma digressão e ao mesmo tempo retém o argumento principal.
11. Portanto, ele adiciona um prefácio a fim de expressar que tinha muito a dizer, mas deveriam estar preparados para que a palavra que lhes dirigia não fosse em vão. Ele os adverte, dizendo que 0 que tinha a lhes dizer seria difícil de ouvir, não para afugentá-los, mas para aguçar sua atenção. Como sucede que aquilo que se nos afigura fácil, geralmente nos torna lerdos, assim som os aptos a ouvir mais atentam ente ao nos defrontarmos com algo que se nos afigura obscuro. Ele aponta para eles como a causa da dificuldade, não o tema. Aliás, Deus trata conosco de uma forma tão clara e isenta de ambiguidade que sua Palavra é com razão denominada de luz. Seu brilho, contudo, é ofuscado por nossas trevas.8 Isso sucede em parte por causa de nosso embotamento e em parte por causa de nossa leviandade. A pesar de sermos mais do que obtusos em nosso entendimento da doutrina de Deus, há ainda que adicionar a esse vício a depravação de nossos afetos. Aplicamos nossa m ente mais à vaidade do que à verdade de Deus. Somos continuam ente impedidos, ou por nossa rebelião, ou pelos cuidados deste mundo, ou pela luxúria de nossa carne.
De quem
5.
Tu és meu F
5.
Tu és meu F
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